terça-feira, 9 de novembro de 2010

ENEM NÃO É PANACEIA PARA PROBLEMAS CONJUNTURAIS

Durante a década de 1980 algumas universidades públicas do Rio de Janeiro, a saber: UFRJ, UERJ, ENCE e CEFET resolveram retirar da Fundação CESGRANRIO a função de realizar seus exames vestibulares, dadas as falhas que, vez por outra ocorriam e que davam muito o que falar.

Uma dessas falhas mais famosas foi a anulação de uma dezena de questões sobre literatura, todas baseadas em um texto de Carlos Drummond de Andrade. A reclamação se deu a partir do próprio autor que na época era articulista do “Jornal do Brasil” e chamava as provas da CESGRANRIO, não carinhosamente, de “provinhas-cemitério”, dada a quantidade de cruzes que o candidato era obrigado a fazer, pois eram todas questões de “múltipla escolha”.

Daí para frente o Prof. Carlos Serpa, o então big boss do vestibular no RJ, deu a ordem de só se utilizar textos de autores mortos nos exames. Morto não discute Teoria Literária que, aliás, segundo o imortal-vivo Ledo Ivo, da Academia Brasileira de Letras, é matéria inútil a afastar o jovem estudante da literatura clássica.

O fato é que o Prof. Serpa, digo, a CESGRANRIO perdeu uma fortuna ao deixar de elaborar os exames vestibulares mais concorridos do RJ. E também é fato que os educadores que levaram adiante o projeto de autonomia das universidades públicas, muitos alinhados com a esquerda (a ditadura agonizava), não viam nenhum sentido em não realizar, elas mesmas (as universidades) seus exames vestibulares. E nessa esteira introduziram a prova discursiva logo de cara, isto é, só havia uma fase de exame.

Foi um desastre absoluto, pois pessoas semi-alfabetizadas e outras completamente despreparadas prestaram tal exame...e tivemos de avaliar suas provas. Os professores Jorge Lúcio Serra Vasconcellos e Paulo Fábio Salgueiro, bem vivos, mercê de Deus, não me deixam mentir. Foram quase 3.000 provas para cada avaliador no caso da Biologia, tendo-se que ler toda sorte de asneiras, incluindo ofensas, palavrões etc.

No ano seguinte cada universidade estabeleceu suas próprias regras e, de plano, estabeleceram que haveria uma pré-seleção, isto é uma “peneira” a fim de que só participassem das provas discursivas, numa segunda fase, os candidatos com condições mínimas para tal. A esta altura o Prof. Paulo Fábio Salgueiro coordenava o vestibular da UERJ e, é preciso que se diga, com muito sucesso.

Foram necessários os erros e acertos comuns a qualquer mudança de status quo até que se atingisse aquilo que se pretendia ser o ideal, já que a perfeição é apanágio de Deus.

E o ENEM? De caráter muito mais amplo, uma vez que é permeado por aspectos como cidadania e outros de cunho social, todos previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, não pode ser encarado como panaceia que vá solucionar todas as questões que envolvem o acesso às Universidades Públicas. Para melhor entendermos esse ponto vejamos o que diz o MEC sobre a fundamentação do ENEM, in verbis:



"Concepções e fundamentos do Enem

A estrutura conceitual de avaliação do Enem, delineada no Documento Básico, de 1998, que definiu as suas características gerais, vem sendo aprimorada e consolidada a cada aplicação do exame, sem, contudo, afastar-se dos fundamentos estabelecidos na concepção original. O ponto de partida para estruturação do Enem foi o advento da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, que introduziu importantes inovações conceituais e organizacionais no sistema educacional brasileiro. O ensino médio, que ganhou uma nova identidade como etapa conclusiva da educação básica, recebeu a atribuição de preparar o aluno para o prosseguimento de estudos, a inserção no mundo do trabalho e a participação plena na sociedade.

A base epistemológica do Enem, portanto, tem como principal fundamento o conceito de cidadania, dentro de uma visão pedagógica democrática que preconiza a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Estes são os principais atributos que a LDB relaciona ao perfil de saída do aluno da escolaridade básica. Tomando como referência principal a articulação entre educação e cidadania firmada pela Constituição Federal e ratificada pela LDB, o Enem foi criado com o objetivo de avaliar o desempenho do aluno ao final da escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento das competências e habilidades requeridas para o exercício pleno da cidadania."

Sem adentrar pelo chatíssimo “pedagogês”, temos no excerto acima bem delineados os aspectos de cada candidato que serão aferidos pelo exame. De novo, do próprio MEC, temos, in verbis:

“Busca-se, dessa maneira, verificar como o conhecimento assim construído pode ser efetivado pelo participante por meio da demonstração de sua autonomia de julgamento e de ação, de atitudes, valores e procedimentos diante de situações-problema que se aproximem o máximo possível das condições reais de convívio social e de trabalho individual e coletivo.

Todas as situações de avaliação estruturam-se de modo a verificar se o participante é capaz de ler e interpretar textos de linguagem verbal, visual (fotos, mapas, pinturas, gráficos, entre outros) e enunciados:

- identificando e selecionando informações centrais e periféricas;

- inferindo informações, temas, assuntos, contextos;

- justificando a adequação da interpretação;

- compreendendo os elementos implícitos de construção do texto, como organização, estrutura, intencionalidade, assunto e tema;

- analisando os elementos constitutivos dos textos, de acordo com sua natureza, organização ou tipo;

- comparando os códigos e linguagens entre si, reelaborando, transformando e reescrevendo (resumos, paráfrases e relatos).

COMPETÊNCIAS

I. Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica.



II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.



III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.



IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente.



V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.

HABILIDADES

1. Dada a descrição discursiva ou por ilustração de um experimento ou fenômeno, de natureza científica, tecnológica ou social, identificar variáveis relevantes e selecionar os instrumentos necessários para realização ou interpretação do mesmo.

2. Em um gráfico cartesiano de variável socieconômica ou técnico-científica, identificar e analisar valores das variáveis, intervalos de crescimento ou decréscimo e taxas de variação.

3. Dada uma distribuição estatística de variável social, econômica, física, química ou biológica, traduzir e interpretar as informações disponíveis, ou reorganizá-las, objetivando interpolações ou extrapolações.

4. Dada uma situação-problema, apresentada em uma linguagem de determinada área de conhecimento, relacioná-la com sua formulação em outras linguagens ou vice-versa.

5. A partir da leitura de textos literários consagrados e de informações sobre concepções artísticas, estabelecer relações entre eles e seu contexto histórico, social, político ou cultural, inferindo as escolhas dos temas, gêneros discursivos e recursos expressivos dosautores.

6. Com base em um texto, analisar as funções da linguagem, identificar marcas de variantes lingüísticas de natureza sociocultural, regional, de registro ou de estilo, e explorar as relações entre as linguagens coloquial e formal.

7. Identificar e caraterizar a conservação e as transformações de energia em diferentes processos de sua geração e uso social, e comparar diferentes recursos e opções energéticas.

8. Analisar criticamente, de forma qualitativa ou quantitativa, as implicações ambientais, sociais e econômicas dos processos de utilização dos recursos naturais, materiais ou energéticos.

9. Compreender o significado e a importância da água e de seu ciclo para a manutenção da vida, em sua relação com condições socioambientais, sabendo quantificar variações de temperatura e mudanças de fase em processos naturais e de intervenção humana.

10. Utilizar e interpretar diferentes escalas de tempo para situar e descrever transformações na atmosfera, biosfera, hidrosfera e litosfera, origem e evolução da vida, variações populacionais e modificações no espaço geográfico.

11. Diante da diversidade da vida, analisar, do ponto de vista biológico, físico ou químico, padrões comuns nas estruturas e nos processos que garantem a continuidade e a evolução dos seres vivos.

12. Analisar fatores socioeconômicos e ambientais associados ao desenvolvimento, às condições de vida e saúde de populações humanas, por meio da interpretação de diferentes indicadores.

13. Compreender o caráter sistêmico do planeta e reconhecer a importância da biodiversidade para preservação da vida, relacionando condições do meio e intervenção humana.

14. Diante da diversidade de formas geométricas planas e espaciais, presentes na natureza ou imaginadas, caracterizá-las por meio de propriedades, relacionar seus elementos, calcular comprimentos, áreas ou volumes, e utilizar o conhecimento geométrico para leitura, compreensão e ação sobre a realidade.

15. Reconhecer o caráter aleatório de fenômenos naturais ou não e utilizar em situaçõesproblema processos de contagem, representação de freqüências relativas, construção de espaços amostrais, distribuição e cálculo de probabilidades.

16. Analisar, de forma qualitativa ou quantitativa, situações-problema referentes a perturbações ambientais, identificando fonte, transporte e destino dos poluentes, reconhecendo suas transformações; prever efeitos nos ecossistemas e no sistema produtivo e propor formas de intervenção para reduzir e controlar os efeitos da poluição ambiental.

17. Na obtenção e produção de materiais e de insumos energéticos, identificar etapas,calcular rendimentos, taxas e índices, e analisar implicações sociais, econômicas e ambientais.

18. Valorizar a diversidade dos patrimônios etnoculturais e artísticos, identificando-a em suas manifestações e representações em diferentes sociedades, épocas e lugares.

19. Confrontar interpretações diversas de situações ou fatos de natureza históricogeográfica, técnico-científica, artístico-cultural ou do cotidiano, comparando diferentes pontos de vista, identificando os pressupostos de cada interpretação e analisando a validade dos argumentos utilizados.

20. Comparar processos de formação socioeconômica, relacionando-os com seu contexto histórico e geográfico.

21. Dado um conjunto de informações sobre uma realidade histórico-geográfica, contextualizar e ordenar os eventos registrados, compreendendo a importância dos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais."

Diante do exposto, tem-se, por cristalino, que o que é avaliado no ENEM vai muito além do que hoje exigem para ingresso as universidades de décima categoria e seus “cursos caça-níqueis” que infestam o Rio de Janeiro. Exceção sempre honrosa da PUC/RJ.

É, no mínimo, ingenuidade acreditar que o ingresso nas universidades públicas em cursos concorridíssimos como Medicina, Direito e Engenharia, dar-se-á “de modo mais democrático” por causa do ENEM. Ele minimiza a histórica inversão de que tais cursos estão, há mais de três décadas, reservados aos filhos das elites que podem pagar colégios com ensino fundamental e médio de excelência ministrado ao longo de 40/43 horas semanais. Coisa que, nem em sonho, as administrações dos estados e municípios conseguem, ou sequer pretendem realizar.

Daí a ansiedade, a angústia e todos esses sentimentos de expectativa que decorrem do ENEM e que são, como de hábito, muito bem explorados pela matilha faminta da imprensa e, sobremodo, alguns parlamentares da oposição derrotada como a senadora Marisa Serrano (PSDB-MS), que torcem e rezam para que o exame não atinja seus objetivos.

Penso que já está dando certo, e tal como os vestibulares discursivos que citei ao início, ainda terá de se aperfeiçoar, aprendendo com seus erros. Afinal, não é assim que se educa?

Felicidades a todos.

Em, 09 de novembro de 2010, no saudoso Estado da Guanabara.


Prof. Dr. Haroldo Nobre Lemos.

11 comentários:

Profª Denise Mano disse...

Haroldo

Obrigada pelo texto. Concordo contigo. Como sempre, você tem o maravilhoso DOM de expressar, com maestria e muita propriedade, pensamentos inteligentes e muitos coerentes. Paro por aqui para não escrever bobagens diante de texto tão bem elaborado e bem apresentado. Sinto-me incapaz de continuar a escrever sem errar.

Beijo grande

Denise

Anônimo disse...

É isso,o Enem não democratiza o acesso à Universidade como se divulga. Mudanças estruturais de médio e longo prazo sao fundamentais.

Bruno Mendes, aluno de Jornalismo da Gama Filho.

Lenir Vicente disse...

Lenir Vicente disse:
11 de novembro de 2010 às 12:00
Meu caro professor Haroldo, o sr. nos trouxe uma contribuição valiosa com sua explicação sob o significado do ENEM e sua comparação com os vestibulares do passado é de extrema conveniência.Isso tudo o que o sr. explicou é que deveria ser lido por todos aqueles estudantes que fazem críticas ao ENEM, por considerá-lo difícil, ou por não entenderem os conteúdos das provas.Outra coisa, essa mídia amestrada, esses políticos deisinformados e mal intencionados, certamente não conseguiriam a menor pontuação nas provas do ENEM , tal as sandices que andam a divulgar numa campanha completamente insana.Querem desmoralizar a democratização do ensino no país e querem, o que é pior, que nossos jovens não tenham consciência do que fazem ao escolher determinado curso nas Universidades.Não querem que sejam cidadãos completos.Querem que os jovens da elite continuem burros, estúpidos e sem ideais e que nossos jovens de baixa renda continuem na base da pirâmide.Seria benéfico para todos os estudantes que fizeram o ENEM e vão prestar vestibular, lerem seu depoimento para se inteirarem do significado da politica educacional do governo, do qual me orgulho de ser eleitora.Parabéns por suas explicações e obrigada..

Alaércio Flor disse...

Em síntese,o ENEM perdeu sua função original.Não mesura conhecimento nem avalia mais o ensino médio.

Luiz Paulo - Vitória/ES disse: disse...

11 de novembro de 2010 às 14:23
Lenir, eu até ia escrever, mas você tirou-me as palavras…

Reginaldo disse...

Prof. Haroldo, o senhor demonstra uma lucidez e um senso de justiça apurado no seu artigo. Entretanto, temo as interpretações errôneas que podem advir do uso de expressões infelizes como ‘chatíssimo “pedagogês”’. Somos educadores e sabemos que os jargões, afora os exageros e floreios desmedidos, são necessários para a constituição de um campo de produção intelectual, seja ele qual for. Grande abraço

BLOG DO PROF. HAROLDO NOBRE LEMOS disse...

11 de novembro de 2010 às 22:19
Prezada Lenir, sou muito grato por suas palavras. E devo dizer que a Sra. não erra em reconhecer o que o atual governo fez e vem fazendo pela Educação.Veja, militei toda a vida nas duas áreas mais problemáticas de nosso país…Saúde(como virologista) e Educação.No Colégio Pedro II onde encontro-me no outono de minha carreira, pois já se vão 27 anos, jamais se viu coisa igual.A Velha Casa passou de cinco unidades para 14, empregando mais professores, mais servidores administrativos e técnicos, médicos etc.Abraçamos o EJA (Ensino para Jovens e Adultos),juntamente com o CEFET/RJ, permitindo pela primeira vez em 163 anos, que pessoas afastadas dos bancos escolares há muitos anos retomassem um caminho de esperança através de um ensino propedêutico de alto nível e com formação técnica, em período regular de três anos.No presente, por exigência do MEC dado nosso grande contigente de mestres em doutores em diversas áreas, estamos partindo para o ensino superior e de pós graduação, objetivando a atualização e aprimoramento de docentes de todo o Brasil.Penso que na história recente do País não há paralelo em termos de investimentos e valorização docente diante desta realidade.
E tenho esperança que a presidente eleita consiga manter o Dr. Fernando Haddad a frente do MEC, pois este senhor já deixou seu nome gravado na história educacional brasileira.

Colho o ensejo para agradecer aos demais comentaristas desta singela publicação.

Prof. Dr. Haroldo Nobre Lemos

Bruno Mendes disse...

Bruno Mendes disse:
11 de novembro de 2010 às 22:32
Certamente o ENEM não será o responsável pela democratização no acesso às Universidades. Como esclareceu o professor Haroldo, cursos tradicionais como Medicina, Direito e Engenharia tem em sua maioria alunos de escolas particulares( boas e caras particulares, a minoria das particulares) com estruturas organizacionais que nem se comparam às escolas publicas.

Mudanças estruturais são obrigatórias para se pensar em verdadeira ‘revolução’ na educação e na acessibilidade democrática às Universidades. E as transformações advem de políticas sérias, pensadas em médio e longo prazo, não corriqueiras medidas paliativas.

Redação de Carta capital disse...

Redação Carta Capital disse:
12 de novembro de 2010 às 9:15
Professor Haroldo, caso queira escrever novo artigo sobre o assunto, integrando respostas aos comentaristas, publicaremos com prazer. Obrigado pela contribuição. Celso Marcondes.

Eliana Vinhaes disse...

Eliana Vinhaes disse:
15 de novembro de 2010 às 21:47
Prof. Haroldo:

Solidarizo-me com seus argumentos quanto ao ENEM. Todos os concursos direcionados para muitos alunos apresentam dificuldades que devem ser sempre aprimoradas. Trabalhei diretamente com o prof. Paulo Fabio na UERJ, como docente desta instituição, que sempre esteve sensível às demanadas sociais. A Coordenação do vestibular sob sua orientação foi extremamente competente, posso testemunhar. O ENEM pode possibilitar acesso às Universidade Públicas de forma mais ampla e democrática. Sem dúvida nossa sociedade capitalista ainda preserva privilégios para as elites. Mas a iniciativa de corrigirmos progressivamente as desigualdades deve ser perseguida. Não é tudo o que queremos, mas a luta continua!
Um abraço.
Eliana Vinhaes

Olvers disse...

olvers disse:
11 de novembro de 2010 às 19:25
Parabenizo o professor Haroldo pelo texto, afinal tem muita gente fazendo de tudo para que o Enem não exista mais no país.Há mais pessoas torcendo e realizando ações para desmoralizar o exame , dentre estes, políticos ligados a partidos que não hesitam em destruir a imagem do Enem, representantes do PSDB ,DEM E ETC.