segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sobre mídia, gripes e porcos

Não bastassem as bobagens proferidas com ênfase no alarmismo pelos telejornais, temos ainda as asneiras publicadas por periódicos altamente suspeitos, em todo e qualquer sentido, tais como Veja e Época, sobre a gripe dita suína. Parece que esses jornalistas ignorantes em Virologia não tem a humildade de consultar especialistas ou acessar a literatura para entender o problema. Há livros para leigos, tais como o excelente “A história da Humanidade Contada Pelos Vírus”, de Stefan Cunha Ujvari, publicado sob a égide da Editora Contexto, em 2008, que desmistificam inúmeras conjecturas sem fundamentação científica sobre AIDS, gripes etc, numa linguagem clara e bastante acessível aos não iniciados nas Ciências Biológicas. Abundam as “teorias” sobre o surgimento do vírus da influenza que vem causando justificada preocupação mundo afora. Só faltam surgir as teorias conspiratórias, mas parece que a Época já deu um passo nessa direção em matéria divulgada hoje (04/05/2009) pela manhã através da Band News FM.

Na obra retrorreferida, o autor cita 432 referências bibliográficas, remetendo a periódicos científicos respeitadíssimos e de caráter editorial rígido, criterioso e tradicional. Exemplos: Journal of Virology, American Journal of Human Genetics, European Journal of Human Genetics, Genetics and Evolution, Molecular Biology of Evolution, Nature, World Health Organization (WHO...OMS, em língua portuguesa) etc. O autor conseguiu elaborar um resumo muito bem fundamentado por pesquisadores de todo o planeta acerca da evolução humana e a forma pela qual a Arqueologia Microbiológica, em particular a Viral que faz uso de análises genômicas, vem acrescentando valiosos dados às pesquisas em evolução e, por conseguinte, preenchendo muitas lacunas desses estudos.

Cito um exemplo bem marcante da atuação desastrosa da mídia rapidinha e estupecafiente: a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Logo nos albores da década de 1980, os jornais do mundo estamparam o surgimento do “Câncer Gay”. Não faltaram jornalistas, sociólogos, celebrities, parlamentares e até médicos ignorantes para alimentar a mídia pré-paga e incompetente. E, de certo, para terem seus minutos de fama.

Até Dom Eugênio Salles, então arcebispo do Rio de Janeiro, que era articulista de “O Globo”, desfiou um rosário de idiotices sobre o tema naquele que se diz o jornal mais lido do Brasil. Não me consta que ele seja virologista. As hipóteses conspiratórias do tipo “... foram os americanos que deixaram escapar um vírus de seus laboratórios de guerra bacteriológica...” proliferaram de forma exuberante. Hoje, quando digo que o primeiro contato de humanos com o ancestral símio do HIV , o SIV (vírus da imunodeficiência dos símios), se deu no século XV e que o primeiro surto se deu na década de 1930, ninguém dá bola. Mas isto já foi comprovado pela ciência. Então perdeu a graça...já não é notícia que valha a pena divulgar.

Mas, falemos de gripes e de resfriados. As infecções virais do aparelho respiratório tem particular importância na morbidade (ou morbidez) e na mortalidade humanas em todo o mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), elas são a segunda principal causa de morte entre crianças abaixo dos cinco de idade, idosos e imunossuprimidos. A depender da idade e condições imunológicas do indivíduo toda infecção respiratória viral, seja ela causada por um vírus DNA ou RNA, podem apresentar níveis de gravidade diferentes que vão desde uma indisposição geral até o óbito.

Resfriados, Pneumonias, Bronquites, Bronquolites, Epidemias e Pandemias

Resfriados são infecções do trato respiratório superior, sendo também denominadas infecções influenza-like (flu-like). Em tais casos os pacientes são tratados de forma ambulatorial com medicação para os sintomas, enquanto as defesas imunológicas atuam contra o agente viral que, nestes casos, costuma ser o rinovírus. Estes vírus podem levar a uma pneumonia apenas em casos especiais nos quais existem outras patologias pulmonares. Outros grupos de vírus, os adenovírus e os coronavírus podem atuar da mesma forma.

Vale destacar que os quadros de pneumonia grave durante ou após essas viroses são de etiologia bacteriana. Daí o velho e acertado procedimento médico de administrar antibióticos em pacientes com quadros de resfriados ou gripe que perdurem por mais de 72 horas e nos quais já exista formação excessiva de muco nos pulmões. É comum as bactérias aproveitarem as lesões feitas pelos vírus para invadir o aparelho respiratório. A bronquiolite comum das crianças e a pneumonia viral, via de regra, estão associadas a dois outros tipos de vírus respiratórios muito comuns: o vírus respiratório sincicial e o vírus parainfluenza.

Pelo que é sabido, as infecções causadas por adenovírus, coronavírus e rinovírus podem provocar EPIDEMIAS. Enquanto as infecções causadas pelo vírus da influenza, da parainfluenza e pelo vírus respiratório sincicial podem provocar PANDEMIAS. Quando uma epidemia atinge mais de um continente, com comprovada transmissão humano a humano, a OMS soa o alarme de atenção para o que pode vir a se tornar uma pandemia. O estágio de hoje é o de PANDEMIA IMINENTE. É o nível cinco do alerta que instrui a todos os países para que ativem, de modo imediato, seus sistemas sanitários a fim de aumentar o monitoramento, a detecção precoce de casos suspeitos.

É mister frisar que caso suspeito não é caso confirmado. Os telejornais de anteontem ainda falavam em “pessoas internadas com sintomas da gripe suína”, o que é uma calamitosa e alarmante asneira. Não existe sintoma de gripe aviária, humana ou suína. O que existe é sintoma de gripe! Estes podem ser agudos ou não. A determinação do tipo de vírus só é possível por exames laboratoriais que, modo geral, os hospitais gerais não têm à disposição.

Vírus (essencialmente) respiratórios

São aqueles que encontram nas células do trato respiratório as melhores condições para sua replicação e por elas apresentam tropismo. São eles: o vírus da influenza, vírus respiratório sincicial, metapneumovírus, adenovírus, rinovírus, reovírus, bocavírus e os coronavírus humanos mais recentemente descobertos (SARS-CoV, HCoV-NL 63 e HCoV-KU 1).

Outros vírus utilizam as vias aéreas como porta de entrada no organismo e ponto de partida para sua replicação. Mas o trato respiratório não constitui o alvo principal desses agentes. É o caso do vírus da poliomielite, vírus da varicela-zoster (catapora-herpes zoster), vírus do sarampo, vírus da raiva (presente em aerossóis de secreções de morcegos em cavernas) etc.

Gripe

A gripe é uma infecção pelo vírus da influenza, dos gêneros A, B ou C, que devido a forma agressiva dos sintomas se manifestarem, faz com que um paciente adulto consiga lembrar, com exatidão, o dia e a hora em que os mesmos se iniciaram. Manifesta-se com calafrios, tosse seca, forte dor de cabeça (cefaleia), seguidos por febre superior a 38º C nas 24/72 horas após a infecção. A doença pode durar até sete dias, sendo que, no segundo dia, mesmo sem febre, o indivíduo já pode liberar partículas virais infectivas.

No transcurso da doença surgem ainda: anorexia, cansaço acompanhado de mialgias generalizadas (dores musculares), dor na garganta, coriza e congestão nasal. Os sintomas das vias aéreas superiores devem-se à liberação de produtos celulares (citocinas) e virais, decorrentes da resposta imunológica ao ataque viral nos tecidos. Seja através do sangue (viremia), seja por disseminação intercelular, o vírus chega ao trato respiratório inferior, acometendo laringe, traquéia, pulmões, brônquios e bronquíolos.

Nas infecções por H5N1, são observados altos índices de citocinas liberadas pelos leucócitos. Isto provoca graves alterações como a síndrome hemofagocitária (macrófagos repletos de hemácias), comprometimento dos rins (necrose tubular renal), depleção mielóide, fibrose pulmonar com danos nos alvéolos. A cepa viral que causou a gripe espanhola era altamente virulenta e letal, pois induzia níveis altíssimos de citocinas que levavam a graves hemorragias.

Origem

Este é o aspecto que menos interessa à imprensa, sobremodo à revistinha da globo, a Época.

O vírus da influenza, do gênero A, parece que esteve presente nas aves aquáticas e migratórias há milhares de anos. As fezes dessas aves continham ou o vírus da influenza, ou um seu ancestral e eram eliminadas em lagos e outros reservatórios de água compartilhado por homens e animais. Um acúmulo de mutações acabou por originar os vírus da influenza que conhecemos hoje. E, pelo que demonstra a evolução do vírus nas últimas décadas, pode-se deduzir que esse fenômeno é dinâmico e contínuo.

Na Pensilvânia, pesquisadores que estudam o genoma do vírus durante anos em tipos diferentes de animais, calcularam o tempo entre as mutações e concluíram que a primeira forma de vírus da influenza pode ter surgido há 10 mil anos. É neste ponto da linha do tempo que as criações de galinhas e porcos, na Ásia, começam a ter relevância. O vírus da influenza intercambiado entre esses animais sofreram mutações até chegar aos tipos capazes de infectar o homem. Este passou a infectar outros homens e, como no presente caso, também os porcos. Em suma, o vírus da influenza é tipicamente aviário e chegou ao homem a partir de epidemias entre animais domesticados. Justamente os que, há séculos, vem servindo de alimento para a grande e crescente população asiática.

As mutações ocorrem principalmente em duas proteínas que se projetam do corpo esférico do vírus como espículas. São: a hemaglutinina e a neuraminidase e estão associadas com a ligação do vírus à célula hospedeira. E é sobretudo contra elas que produzimos anticorpos. Os anticorpos produzidos contra proteínas de superfície de vírus da influenza em infecções anteriores podem não conferir, como é o caso, imunidade a um tipo novo, isto é, mutante. São conhecidos até o momento 16 tipos de hemaglutininas e nove tipos de neuraminidases. Daí a classificação em H (nº) N (nº). No caso atual (gripe suína) temos um H1 N1, ou, mais especificamente, um vírus da influenza do gênero A, com hemaglutinina do tipo 1 e neuraminidase do tipo 1.

A orientação da OMS em se empregar a classificação correta (A H1 N1) vem em salvação das criações de suínos. A mitologia acerca dos porcos já é bastante grande o que, em parte, explica a atitude açodada do governo do Egito ao mandar eliminar todo o rebanho daquele país. Nesse ponto é bom lembrar que nenhum vírus suporta altas temperaturas. Os vírus da influenza são destruídos a 56º C/ 30 min, quer dizer que carne, seja de que bicho for, depois de bem assada, cozida etc, não contém vírus.

Tratamento

Não existe medicamento preventivo. O fosfato de oseltamivir (TAMIFLU) e o zanamivir (RELENZA) são inibidores da biossíntese viral e agem diretamente sobre a neuraminidase. O Relenza (Glaxo) não existe no Brasil e é de administração por inalação oral, enquanto o Tamiflu (Roche) é apresentado em cápsulas. Ambos só apresentam resultado se administrados em período não superior a 48 horas contadas a partir do surgimento dos primeiros sintomas. Tem contra-indicações para lactentes, gestantes, pessoas com patologias pulmonares prévias etc. Em 2007, o FDA (Food and Drugs Administration) nos EUA, determinou que se colocasse na bula do Tamiflu o risco de ocorrência de episódios de delírios e outras perturbações mentais. Quanto ao Relenza é destacada a possiblidade de ulcerações na mucosa nasal e sangramento.

Vacina

O mais provável é que até o final de 2009 já exista vacina disponível.